domingo, 15 de fevereiro de 2009

A dor e a delícia


A citação do título é batida, porém sintetiza meu convívio diário com a música visto de diferentes ângulos. Um deles tentei narrar no texto abaixo:

Pagode? Nãaaaaaao!

Eu já não sei o que fazer nem o que esperar a cada vez que viajo com o fagote. Isso sem contar quando me perguntam o que faço.

-Faço música
-Ah! que lindo? Toca o quê?

A resposta depende do meu humor e disposição. Às vezes digo que toco só flauta, por preguiça de dizer flauta doce (que sempre gera complicações). Mas em geral (e se houver tempo) o indagador não se contenta com a resposta flauta e pergunta qual flauta. Então sou obrigada a dizer flauta doce. O pânico vem, porque a flauta doce é associada mundialmnte apenas à educação infantil, como se sabe. Deve ser difícil pra alguém numa conversa rápida entender que eu vim parar aqui pra estudar 5 anos de um instrumento que não passa de um apito. Pois foi isso mesmo que eu vim fazer. Como hoje em dia também toco fagote, minha dúvida e pânico aumentaram consideravelmente nos últimos tempos.

O fagote, esse sim, não é o mais popular dos instrumentos. Por razões óbvias nunca foi usado na educação infantil, é caro, restringe-se basicamente ao repertório sinfônico, clássico. A maioria dos fagotistas começa a aprender relativamente tarde, comparado aos que tocam outros instrumentos, por isso há falta de fagotistas (e também oboístas). Assim, fica meio misterioso até pra quem mexe com música, quem dirá pra população em geral.

Pois bem, agora que estudo fagote tenho que assumi-lo e estar preparada pra todo tipo de situação. As pessoas que conhecem o fagote sempre fazem gestos com a mão para dizer que sabem se tratar de um instrumento grande. É bem engraçado. Outras fazem outro gesto que imita o tudel (tubo de metal pelo qual o ar chega ao instrumento). Eu respondo fazendo um gesto afirmativo qualquer: esse aí...

Outras pessoas não conhecem mesmo e aí eu tento explicar de diferentes maneiras, dependendo da minha animação.

Mas o mais tragicômico é quando eu digo fagote e entendem pagode. Claro, isso só no Brasil, porque aqui não existe essa palavra. Já aconteceu umas duas ou três vezes. Algumas pessoas se conformam:

- Ah! pagode. legal...

Alguma vez não percebi que tinham me entendido mal e o mal entendido perdurou gerando uma conversa sem pé nem cabeça.

Outra vez não entenderam porque eu tinha ido pra Europa estudar pagode, se afinal pagode é do Brasil! E por aí vai....

Isso em contar nas viagens. Eu não viajo com um estojo clássico de fagote por ser muito pesado e as companhias aéreas estarem cada vez mais chatas com tudo e todos. A hora do raio-x vai se aproximando e eu já imaginando como será dessa vez. Ultimamente, quando tenho chance, já vou dizendo que vai passar uma coisa estranha e que é um instrumento musical. As chaves e o tudel são de metal, o que faz do fagote uma arma perigosa e mortal aos olhos de alguns. Além disso o instrumento realmente se parece a algum tipo de bazuca primitiva, não posso negar... sempre me pedem pra abrir, uns comentam, outros mais taciturnos não, outros reconhecem ser um instrumento musical. Já me perguntaram o nome, ouvem com cara de espanto e achando graça, todo tipo de reação. É interessante, acho que vou começar a catalogálas e depois fazer um estudo estatístico pra apresentar um projeto nacional pela popularização do fagote! Salvem os fagotistas dos constrangimentos e filas nos raios-x!


Reservo o último parágrafo pra narração do auge da minha carreira fagotística até hoje:
Aeroporto de Paris Orly. Eu e minha mãe achávamos que íamos de avião pra Itália (vôo cancelado e todo tipo de complicações decorrentes). Ao passar pelo raio-x, controle severo. Tirei casaco e até uma boina, mexeram no meu cabelo, já fui pensando no fagote. Um senhor sorridente começou a revistar minha mochila e perguntou o que tinha na outra bolsa. Eu disse que tinha um fagote, enquanto ele abria. Abriu também um sorriso e disse:


-Ah! Fagote, que lindo! Adoro fagote. A parte de fagote na sinfonia tal de não sei quem, o solo da Sagração da Primavera! Você toca o concerto de Mozart?


Eu, ainda surpresa, disse que era muito principiante e que ainda não tocava o concerto de Mozart, mas de qualquer forma (e eu não sei porque disse isso!!), aquele era um fagote barroco e pra tocar Mozart seria bom ter um outro tipo de fagote. Achei que já havia parado por aí quando tive a seguinte resposta:


-Ah, então você é dessas que fica ali com Lully, Charpentier....

Respondi um 'é' amarelo, peguei minhas coisas e com os olhos arregalados olhei pra minha mãe que não entendeu nada.

-O que foi, Bebel?
-Nada, o moço disse que gostava de fagote.

Foto tirada do site www.haryschweizer.com
Hary é fagotista, professor e construtor de fagotes residente em Brasília
Na foto, 3 fagotes (conhecidos como dulcian) dos séculos 16/17 e dois do século 18.

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